segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Considerações sobre o Jesus histórico

Matheus Viana

Atualmente há um debate que se divide em duas partes: uma é sobre a dicotomia entre o Jesus histórico e o Jesus místico; e a outra é sobre a existência deste Jesus histórico.

Muitos proponentes deste debate buscam o consenso entre duas premissas: a de que o Jesus místico é resultado de uma fé irracional, que resultou na religião conhecida como cristianismo; e a tentativa de colocar em xeque a existência do Jesus histórico que seria alvo do método científico/histórico, ou seja, puramente da razão. Como vivemos, de acordo com vários pensadores, em uma sociedade racionalista (um dos principais traços da modernidade), o Jesus histórico passou a ser pauta principal do debate. Pois o Jesus místico é relacionado à fé religiosa. E conforme o adágio popular preconiza: “religião não se discute”.

No entanto, o método histórico utilizado para analisar a existência do Jesus histórico e Sua conduta como ser humano comprova Sua existência. Basta remontarmos aos escritos antigos, reconhecidos pela historiografia. Flavio Josefo, historiador judeu (38-100 d. C.), escreveu sobre Jesus em seu livro Antiguidades Judaicas: “nós aprendemos que Jesus era um homem sábio que fez feitos surpreendentes, ensinou a muitos, ganhou seguidores entre judeus e gregos, foi tido como Messias, acusado pelos líderes judeus, condenado a ser crucificado por Pilatos, e considerado ressurreto.”.[1]

Outra evidência histórica é a de Cornélio Tácito (55-120 d. C.), historiador romano do primeiro século que “é considerado como um dos mais corretos historiadores do mundo antigo.” [2], que relatou como Nero “infligiu as mais terríveis torturas a uma classe… chamada cristãos. Cristo, de onde o nome teve sua origem, sofreu penalidades extremas durante o reino de Tibério nas mãos de um dos nossos procuradores, Pôncio Pilatos…”.[3]

Além disso, por mais que alguns não aceitem por motivos de convicções particulares, a Bíblia é considerada um documento histórico. O renomado arqueólogo judeu Nelson Glueck escreveu: “Deveria estar sublinhado categoricamente que nenhuma descoberta arqueológica jamais contradisse uma referência bíblica”.[4] É de grande valia citar o excelente livro do arqueólogo alemão Werner Keller E a Bíblia tinha razão (Editora Melhoramentos, 1992), cujo título nada mais foi do que a dedução que chegou após anos de escavações e descobertas arqueológicas no oriente médio.

Sim, Jesus existiu. O objeto de estudo, todavia, ainda é o Jesus histórico. Quando ouvimos esta expressão temos a tendência de relacionarmos ao movimento do liberalismo teológico que ocorreu na Alemanha em meados do século XIX e início do XX. Mas quando analisamos a origem de questões como “quem foi Jesus?” e “o que Ele fez?”, vemos que ela é muito mais antiga.

Nos dias do próprio Jesus tais questões estavam em voga. A cúpula religiosa judaica, representada principalmente pelos fariseus, saduceus e herodianos, por se sentir ameaçada com a conduta de Jesus que arrebanhava muitos seguidores, tinha como incumbência investigar quem era, de fato, o carpinteiro de Nazaré que também era mestre da Lei em Israel. Tais facções eram unânimes em negar que Jesus era o Messias profetizado pelos profetas do período veterotestamentário. Mas Ele, por sua vez, não escondia tal fato (Cf. Lucas 4:18-21, João 6:35-51).

Com a morte de Jesus, o chamado período apostólico se inicia com o seguinte veredicto: “Jesus de Nazaré foi aprovado por Deus diante de vocês por meio de milagres, maravilhas e sinais que Deus fez entre vocês por intermédio dele, como vocês mesmos sabem. Este homem lhes foi entregue por propósito determinado e pré-conhecimento de Deus; e vocês, com a ajuda de homens perversos, o mataram, pregando-o na cruz. Mas Deus o ressuscitou dentre os mortos, rompendo os laços da morte, porque era impossível que a morte o retivesse. (...) Portanto, que todo o Israel fique certo disto: Este Jesus, a quem vocês crucificaram, Deus o fez Senhor e Cristo.” (Atos 2:22-24 e 36).

Para os apóstolos e os cristãos de forma geral não há nenhum indício de dicotomia entre o Jesus histórico e o Jesus místico, que para eles era o Jesus divino. O apóstolo Paulo, o principal propagador do cristianismo ao chamado mundo gentílico (não judeu), relatou em sua carta aos cristãos da cidade de Filipos: “embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo e tornando-se semelhante aos homens. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso Deus o exaltou à mais alta posição e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus e na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai.” (Filipenses 2:6-11).

Vemos aqui algumas características sobre a pessoa e obra de Jesus: divindade, humanidade, crucificação, ressurreição e glorificação. Ou seja, para os apóstolos, cujo pensamento foi sintetizado por Paulo no trecho relatado acima, Jesus é o Deus eterno que se tornou humano, morreu, ressuscitou e retornou aos céus – processo chamado de ascensão - glorificado. Sendo assim, Jesus é Deus que se fez homem. Os elementos divino e histórico reunidos na mesma pessoa. O próprio Jesus declarava tal fato: “Quem me vê, vê o Pai.” (Evangelho segundo João 14:9).

Com a morte dos apóstolos, inicia-se o período dos pais da Igreja, também chamado de Patrística, onde os sucessores dos apóstolos assumem a liderança das diversas congregações existentes em várias cidades do Oriente, da Ásia menor e da Europa. Neste período, principalmente nos Séculos II a VI, desenvolvem-se as doutrinas que iriam compor a chamada ortodoxia cristã. Neste período o debate sobre a dicotomia entre o Jesus histórico (humano) e o Jesus divino, que pairou sobre a questão se Jesus possuía uma ou duas naturezas, foi acirrado.

Após vários concílios que discutiram o tema, chegou-se à conclusão de que Jesus é plenamente Deus e plenamente homem. Ou seja, Jesus foi – e é – uma pessoa com duas naturezas plenas: divina e humana. Fato que os apóstolos já afirmavam. Esta foi a conclusão que o Concílio de Calcedônia (451 d. C.) chegou, que ficou conhecida como Definição calcedônica. Embora algumas dissensões tenham surgido em relação ao veredicto calcedônio, que foi na verdade uma continuação do Credo Niceno (325 d. C.) com alguns acréscimos feitos pelo Concílio de Constantinopla (381 d. C.), elas não eram no tocante à dicotomia entre o Jesus histórico e o divino, mas sim em relação ao modo como as duas naturezas se convergiam em Sua pessoa. No período conhecido como a Reforma Protestante, a Confissão Helvética, em 1566, não afirmou apenas a doutrina contida na Definição calcedônica, mas também o fato de que Jesus, por possuir duas naturezas sendo apenas uma pessoa, possuía também duas vontades, relacionadas às suas naturezas, a exemplo do que ficou estabelecido no Concílio de Constantinopla (680 d. C.).

Esta dicotomia entre o Jesus histórico e o divino (também chamado de místico) reapareceu com força total no século XIX, no liberalismo teológico alemão. No entanto, para a compreendermos, devemos analisar as correntes de pensamento que influenciaram este movimento.

No século XIV, em decorrência do declínio da escolástica, surgiu o movimento nominalista que, com o intuito de atenuar as especulações filosóficas em relação às doutrinas cristãs, cria a dicotomia entre razão (filosofia) e fé (teologia) que, entre outros aspectos, ficou conhecida como a Navalha de Ockham. As coisas naturais, objetivas e perceptíveis seriam alvo da filosofia. Já a teologia, por sua vez, iria se limitar apenas às coisas sobrenaturais (ou metafísicas). Era nada mais do que a dicotomia natureza/graça, característica marcante da escolástica - que alguns teólogos do período tentaram transformar em dialética, como Tomás de Aquino, por exemplo - levada ao extremo.

Esta dicotomia nominalista influenciou, de certa forma, o racionalismo cartesiano no século XVII que, na tentativa de libertar a razão humana e torná-la autônoma, a exemplo do que ocorria no renascentismo, a empregou sob outro prisma. Sua dualidade psicofísica, onde o pensamento humano (subjetivo) seria alvo da filosofia e o corpo (objetivo) da biologia, foi um dos alicerces da revolução científica no século XVII e também do Iluminismo no XVIII. O iluminismo como corrente de pensamento não foi homogêneo. Mas em se tratando da influência intelectual em relação ao liberalismo teológico e sua consequente dicotomia entre o Jesus místico e o Jesus histórico, não podemos deixar de mencionar a fenomenologia kantiana.

Immanuel Kant, considerado um dos grandes personagens do iluminismo, ao fazer seu criticismo (não no sentido pejorativo, mas no de análise) em relação ao racionalismo cartesiano (razão pura) e o empirismo (razão prática), divide o conhecimento em duas partes: o númeno (ou a coisa em si que não pode ser conhecida pela razão) e o fenômeno (que pode ser conhecido pela razão através do método científico). De acordo com tal classificação, Kant colocou Deus e tudo o que se refere a Ele no númeno. Com isso, os aspectos divinos e sobrenaturais de Jesus foram deixados de lado. O que restou para análise foi apenas Suas características humanas, ou melhor, o Jesus histórico.

Nós, cristãos, precisamos avaliar a relevância deste debate. Pois Jesus é o objeto central do cristianismo, cuja prática redunda em servi-Lo. Algo que consiste também em fazê-Lo conhecido através de nossa vida prática e da propagação de Seu Evangelho. Mas para isso, conforme preconiza Francis Schaeffer, precisamos discernir o tempo em que vivemos.

Referências bibliográficas

DOOYERWERD, Herman. No crepúsculo do pensamento: Estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico; tradução: Guilherme Vilela Ribeiro, Rodolfo Amorim Carlos de Souza. – São Paulo: Hagnos, 2010.

SCHAEFFER, Francis. A morte da razão; tradução de João Bentes. 2. ed.  São Paulo: ABU Editora – Viçosa: Editora Ultimato, 2014.

BERKHOF, Louis. A história das doutrinas cristãs; tradução de João Marques Bentes e Gordon Chown. – São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992.

ECKMAN, James. P. Panorama da história da Igreja; tradução de Emirson Justino da Silva. – São Paulo: Vida Nova, 2005. (Curso Vida Nova de Teologia Básica; v. 4).

DESCARTES, René. O discurso do método; tradução, prefácio e notas de João Cruz Costa. – Edição especial – Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Saraiva de Bolso, 2011.

GONZÁLEZ, Justo L. Uma breve história das doutrinas cristãs; tradução de José Carlos Siqueira. – São Paulo. Hagnos, 2015.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à filosofia. 2. ed. rev. atual. – São Paulo: Moderna, 1993.



[1] WILKINS, Michael J. & MORELAND, J. P., Jesus Under Fire, Zondervan Publishing House, 1995, p. 40. Citado em http://www.suaescolha.com/jesus/biblia/
[2] MCDOWELL, Josh. The New Evidence that Demands a Verdict, Thomas Nelson Publishers, 1999, p. 55. Citado em http://www.suaescolha.com/jesus/biblia/
[3] http://www.suaescolha.com/jesus/biblia/
[4] Ibid, 2. p. 61. Citado em http://www.suaescolha.com/jesus/biblia/

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