Matheus Viana
Fé e ciência são
perfeitamente compatíveis e coesas, desde que nenhuma das partes envolvidas
percam sua essência/substância. Não podemos querer contextualizar a fé cristã a
este preço. Ela pode ser dialogável, mas de maneira nenhuma negociável.
A questão da literalidade das Escrituras tem sido,
atualmente, alvo de um acalorado debate. Contudo, não se trata de algo peculiar
do presente. Desde o período da história da Igreja chamado de patrística, este
tema causa efervescência. Logo após a era apostólica, havia duas principais
escolas teológicas: a de Alexandria e a de Antioquia. Ambas foram representadas
por brilhantes teólogos e apologetas. Os principais, no entanto, são Irineu e
Tertuliano, de Antioquia; e Orígenes e Clemente, de Alexandria.
A escola de Alexandria tinha sua teologia pautada na
alegoria bíblica por ser fortemente influenciada pela filosofia helenística
clássica, principalmente a platônica. Tal influência também se dava ao uso da
Septuaginta (LXX), versão grega do Antigo Testamento que incorporava vários
aspectos helenísticos à teologia cristã. Orígenes e Clemente, grosso modo,
intelectualizaram a fé. Claro que devemos levar em consideração que os da
escola de Antioquia também usavam a razão no exercício da fé. Contudo, a
teologia alexandrina era pautada na alegoria bíblica. O que, na opinião dos
teólogos, deixavam, conforme afirmou J. N. D. Kelly em seu livro Patrística, origem e desenvolvimento das
doutrinas do cristianismo, o cristianismo intelectualmente atrativo.
Já a escola de Antioquia tinha sua exegese e hermenêutica
pautadas na literalidade bíblica. Por isso, a teologia sobre a encarnação de
Jesus, elaborada nos séculos II e III, antes do Concílio de Nicéia (325 d. C),
em Antioquia foi determinante para a consolidação da fé cristã. Claro que ela
foi se desenvolvendo por conta dos ataques que sofreu de heresias como o
arianismo, o docetismo e o nestorianismo, até o Concílio de Calcedônia (451 d.
C).
Nos dias de hoje, o embate se dá em torno da literalidade
bíblica no tocante ao também antigo debate entre evolucionismo e criacionismo.
Sim, este debate possui uma vertente diferente, pois os representantes das duas
correntes são teístas. Ou seja, a discussão entre existência ou não-existência de Deus está fora de questão. Os criacionistas defendem a literalidade bíblica. Já os
evolucionistas teístas, que também se autodenominam como criacionistas evolucionários,
dizem que os primeiros capítulos de Gênesis não podem ser lidos de forma
literal, mas como metáforas que coadunam com as verdades científicas.
Do lado dos criacionistas, temos, dentre outros, o físico e matemático
Adauto Lourenço, autor dos livros Onde
tudo começou: introdução ao criacionismo e Gênesis 1 e 2: um relato da criação,
e o físico e astrofísico Jason Lisle, autor do livro A prova definitiva da
criação: resolvendo o debate das origens.
Adauto Lourenço preconiza que a própria ciência atesta a literalidade de
Gênesis e, consequentemente, do criacionismo: “Dentre alguns eles, podem ser
citados aqui os nomes de Francis Bacon, Galileu Galilei, Johannes Kepler,
Blaise Pascal, Robert Boyle, Sir Isaac Newton, Carolus Linneaus, Leonard Euler,
William Herschel, James Parkinson, Jedidah Morse, John Dalton, Michael Faraday,
Joseph Henry, Richard Owen, James P. Joule, George Stokes, Gregor Mendel, Louis
Pasteur, William Thompson (Lord Kelvin), Bernhard Riemann, James C. Maxwell,
John Strutt (Lord Rayleigh), John A. Fleming, Ernest J. Mann, Willian Ramsay e
Wernher von Braun. Quais razões científicas teriam feito com que tantos nomes
importantes da ciência tivessem optado pelo posicionamento criacionista e não
pelo naturalismo? A resposta encontra-se justamente na pesquisa
científica. Ela é a maior fonte de recursos para o posicionamento criacionista.”,
afirma em seu
livro Onde tudo começou: introdução ao
criacionismo.
Em contrapartida, o livro recém-lançado no Brasil Teste de fé, organizado e divulgado pelo
pastor Guilherme de Carvalho, presidente da L´Abri Brasil, foi pivô de um intenso confronto de cosmovisões, principalmente
na internet. Em nota divulgada em seu perfil no facebook,
Carvalho elucidou:
“(1)
Eu não arredei o pé das crenças evangélicas clássicas (como Adão histórico, queda espaço-temporal, Providência de Deus, etc), nem da inerrância bíblica, meus irmãos.
Apenas não acredito que a Bíblia seja um manual de ciências e que o literalismo
seja uma prática hermenêutica sã. Entendo que a leitura ‘enciclopédica’ das
Escrituras, buscando nelas a fundamentação cognitiva para as ciências (e
negando assim a sua soberania relativa), é um erro gravíssimo. Eu diria aos
meus irmãos criacionistas-da-terra-jovem que eles estão lendo a Bíblia errado,
na minha opinião, e com isso estão forçando um conflito inexistente com a
ciência moderna.
(2) A afirmação de
que a teoria da evolução corrompe a cosmovisão cristã é absolutamente falsa, no
meu julgamento. Ela confunde sob um único termo ("evolução") três (ou
até mais) usos distintos:
(i)
"evolução" como representação diacrônica e progressiva da vida na
terra (Michael Behe, por exemplo, um dos "pais" do DI, aceita a
teoria nesse ponto e em outros, como a hipótese do ancestral comum);
(ii)
"evolução" como mecanismo darwiniano clássico, neodarwiniano ou
posdarwiniano (mutação, seleção, deriva genética, especiação, convergência,
etc);
(iii) "evolucionismo",
isto é, evolução transformada em metafísica geral para explicar tudo, e até a
moralidade e a racionalidade, como no Naturalismo filosófico.
Há muitos biólogos
evolucionários evangélicos como Simon Conway Morris (Cambridge University) que
aceitam (i), problematizam (ii) movendo-se para posições posdarwinianas (não
"anti" darwinianas), e rejeitam (iii), mantendo a fé evangélica
clássica sem problemas. O "evolucionISMO" é certamente incompatível
com a fé Cristã. Como qualquer outro "ismo". Mantida estritamente como teoria da história biológica da
terra, a teoria da evolução não tem nenhuma força contra a fé evangélica. Se aceita, ela pode e deve ser lida
dentro da narrativa Criação-Queda-Redenção que funda a cosmovisão Cristã.
Por isso mesmo, a expressão
empregada por muitos cristãos que aceitam a teoria da evolução é "criacionismo evolucionário",
ao invés de "evolucionismo teísta". Destaco ainda que, grosso modo,
os criacionistas progressivos e os criacionistas evolucionários
concordam em aceitar o ponto
(i), concordam em rejeitar o ponto (iii) e discordam no ponto (ii). Além disso,
a classificação é difícil. Como eu, por exemplo, acredito que uma singularidade
(ou um "milagre") seria necessário para produzir a primeira forma de
vida, sou frequentemente considerado um ‘criacionista progressivo’”.
Como podemos ver, é ponto pacífico de que Deus é a origem
de todas as coisas (Colossenses 1:16). Portanto, assim como o apóstolo Paulo
nos adverte a julgarmos todas as coisas a fim de reter o que é bom – e a
verdade – (I Tessalonicenses 5:21), devemos analisar ambas e ver suas
reverberações na fé cristã.
Não é possível crer no Adão histórico e na teoria
evolucionista, seja em qualquer das três vertentes apontadas por Guilherme de
Carvalho em seu texto. Se o Adão histórico é real, ponto para a literalidade
bíblica. Se este Adão foi resultado de um processo evolutivo, então o processo
descrito em Gênesis 2:7 não passa de alegoria. Sendo assim, ainda que os
“criacionistas evolucionários” não queiram, o relato da queda e da proposta de
redenção feita por Deus ao homem prefigurada na “pele animal” também é. O que
compromete dois dos três pilares da teologia cristã: queda e redenção, claro,
como consequência da criação já ter
sido comprometida.
Certa vez debati com um homem que dizia que a cruz de
Cristo não deve ser considerada de modo literal, mas apenas como um exemplo de
superação nos momentos difíceis. Desta forma, o caráter salvífico cai por terra,
a obra de Cristo perde totalmente a validade e, consequentemente, o
cristianismo perde sua razão de ser. O “criacionismo evolucionário” que
contesta a literalidade de Gênesis age da mesma forma.
Usemos como exemplo o texto descrito por Paulo em sua carta
aos colossenses 1:15 e 18: “Ele (Jesus) é a imagem do Deus invisível, o primogênito
de toda a criação (...) Ele é a cabeça do corpo, que é a igreja, é o princípio
e o primogênito entre os mortos.”. Não podemos cometer, ao interpretar o
termo “primogênito” de toda a criação, o mesmo erro de Ário de afirmar que Jesus
é a primeira criatura de Deus e, por isso, não possui a mesma natureza e também
não é a mesma substância (homousion e
hypostasis) de Deus. Por isso, não
pode ser considerado como Deus. É evidente que Paulo estava dizendo que
Jesus estava presente no ato da criação, concernente com a afirmação joanina
(Evangelho segundo João 1:1-2) e que Ele foi usado como modelo para a criação do homem, já que o
ser humano foi formado (feito de acordo com uma forma) à imagem e semelhança de
Deus (Gênesis 1:27).
É baseado neste fato que Calvino declara na primeira de
suas institutas da religião: “O
verdadeiro conhecimento do ser humano é completamente dependente do
conhecimento de Deus”. Obviamente esta imagem e semelhança não são físicas.
Mas sim de que o ser humano foi dotado de razão e, também, que o Espírito divino
(fôlego, ruach) habitava em seu
interior. Se Jesus foi o modelo para a formação do homem, este não pode ser
resultado de processos químicos e biológicos que, de partículas oriundas de uma
explosão atômica, se tornou um peixe. Que após milhões de anos, se tornou, por
conta das mutações genéticas e variações decorrentes de adaptações ambientais
(resquícios da teoria de Lamarck refutada pela própria ciência), um réptil,
além de outras espécies até se tornar um homosapiens.
Deus criou o ser humano para Se manifestar a toda a
criação através dele. É baseado nesta verdade que o apóstolo Paulo preconiza: “A ardente expectativa da criação aguarda
pela manifestação dos filhos de Deus”. (Romanos 8:19). Sim, o ser humano
está sujeito a um processo evolutivo a partir do momento em que ele se submete
à cruz de Cristo. Nos tornamos novas criaturas (II Coríntios 5:17) e, na medida
em que deixamos a ação da cruz operar em nossa vida (Evangelho segundo Mateus
16:24, II Coríntios 3:18), vamos crescendo em sabedoria, estatura e graça
(Evangelho segundo Lucas 2:52) até atingirmos a estatura do varão perfeito
(Efésios 4:13).
Fé e ciência são perfeitamente compatíveis e
coesas, desde que nenhuma das partes envolvidas percam sua essência/substância.
Aristóteles definiu como essência/substância tudo o que quando é tirado de
algo, este algo deixa de ser. Tirar a literalidade das Escrituras é tirar
parte de sua essência, já que foram escritas por homens, apesar de falhos,
inspirados por Deus (II Timóteo 3:16). Ou seja, é descaraterizar algo que,
conforme o próprio Jesus afirmou, revela quem Ele é (Evangelho segundo João
5:39). Não podemos querer contextualizar a fé cristã a este preço. Ela pode ser
dialogável, mas de maneira nenhuma negociável.
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